quarta-feira, 23 de março de 2011

Nina Fideles: toda rebeldia tem seu preço

Ótima entrevista com a jornalista e fotógrafa Nina Fideles. Uma visão realista e bela acerca da influência do Hip-hop e dos movimentos sociais sobre a sociedade.

Essa não é uma entrevista, mas sim uma verdadeira aula de ativismo


Fonte:
Central Hip-hop




Bocada - Forte ::: Entrevistas
Data: 21/03/2011

Nina Fidelis (direita), Crônica Mendes e Dexter
O ´Ajoelhaço` da Cooperifa. Foto: Nina Fideles
´Ajoelhaço` da Cooperifa. Foto: Nina Fideles
Brown em ´A Família convida`. Foto: Nina Fideles
Gaspar no Manos e Minas. Foto: Nina Fideles
A Família e Lia9M. Foto: Nina Fideles
Nina Fideles é uma jornalista e fotógrafa que dedica seu trabalho ao hip-hop. Integrante da ala crítica e militante da cultura de rua, Nina tem sua lente focada no desenvolvimento do cenário rap e nas manifestações dos movimentos sociais. A jornalista também trabalha no Projeto Origens, evento que reúne artistas da velha e da nova escola da cena. No início de 2011, junto com João Campos e W. Jesus, Nina Fideles disponibilizou a primeira parte do documentário Zona Crítica - O Filme, um projeto ligado ao curso de Teorias Sociais e Produção do Conhecimento, uma parceria entre a Escola Nacional "Florestan Fernandes" e a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Em entrevista ao Central Hip-Hop/BF, a jornalista fala sobre a historicidade do rap brasileiro, pontuando rupturas e continuidades no discurso dos artistas e militantes. "Como toda rebeldia tem seu preço, qualquer aliança também tem", afirma Nina Fideles. Leia trecho abaixo.

Central Hip-Hop (CHH): Qual é a principal razão para a elaboração desse documentário?
Nina Fideles: Esse documentário é resultado de um curso que fiz pelo MST, que se chama Teoria Social e Produção de Conhecimento. É uma parceria entre a Escola Nacional "Florestan Fernandes" (ENFF) e a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e faz parte de uma série de cursos pensados e organizados pela Escola Nacional junto com várias universidades do país e servem para contrapor a educação como mercadoria e aprofundar temas. Além de ampliar o acesso de sem-terra, sem-teto e militantes às universidades e aos cursos. É uma forma de ocupar estes espaços que, mesmo sendo públicos, há muito tempo vem sendo privados e elitizados.

E como em todo curso, nós tínhamos que entregar uma dissertação, um trabalho de conclusão. E eu e mais dois companheiros, o João Campos e W. Jesus, decidimos realizar este trabalho de forma diferente. Primeiro não faríamos nenhuma elaboração individual, que é o que a universidade sempre pregou. Faríamos nosso trabalho de forma coletiva. Segundo, que faríamos em uma linguagem que fosse mais acessível, que pudesse provocar o debate. E terceiro, faríamos sobre um tema que parece estar distante das discussões do Movimento dos Sem Terra, mas não está, pois urbanização é acesso à terra e o uso que se dá à ela é que é diferente. Nós tivemos que pensar e deixar o roteiro bem redondo, com temas complexos, para não cairmos em contradições e fôssemos bem didáticos.

CHH: Qual é o fio condutor do documentário?
Nina Fideles: Quando começamos a pensar um roteiro, nós nos instigamos a responder várias questões que fazíamos no dia a dia, como militantes urbanos envolvidos em um movimento sem terra. As causas e motivos de tantas favelas, os processos de urbanização, o trabalho precarizado. Mas, ao tentar responder a estas questões, fomos obrigados a ir bem mais longe que pensávamos inicialmente, que era na verdade o início destes processos, a gênese do desenvolvimento capitalista no mundo. E foi muito difícil estudar isso, tentar responder às nossas perguntas. Ainda bem que tivemos várias pessoas que nos ajudaram com entrevistas e sugestões de leituras.

CHH: Nos dias de hoje, qual é o principal problema para o entendimento ou assimilação de uma proposta alternativa socialista?
Nina Fideles: Ah! São tantos... Mas acredito que uma das maiores dificuldades seja a gente pensar um outro mundo com menos regalias e luxos. São as questões cotidianas e reais que nos colocam estas contradições de que em algum momento teremos que abrir mão de certas coisas, quando a lógica do mundo impõe conquistar mais coisas e não abrir mão de nada.

O que falta dizer deste consumo é que, como diz o documentário, é impossível socializar o padrão capitalista para todos, portanto, posso abrir mão da minha Ferrari, para ter um carro que ande e coisas que me sirvam primeiro e unicamente em sua funcionalidade. Quando as pessoas pensam em socialismo parece que é a socialização da miséria, mas não é. É socialização das riquezas produzidas.

Parte também do princípio de que as experiências socialistas concretas nunca serão completas. E, quando falamos de um outro mundo, as pessoas querem referências completas, querem saber como vai ser, o que vai ter lá, como uma maquete de condomínio. Mas ignoram-se as particularidades do tempo histórico, do mercado, do cenário global, e tantas outras coisas que vão influenciar nas experiências socialistas. Cuba é diferente da Venezuela, que é diferente do que foi a Rússia, do que foi a China, das experiências na América Latina... É sempre algo a construir no nosso tempo, com elementos específicos.

CHH: Quanto ao consumo... Hoje, de certa forma, as pessoas são vistas mais como consumidores e conquistam seus direitos através das relações de compra, ao invés de desenvolverem uma cidadania e uma representatividade política efetiva...
Nina Fideles: Na verdade, o direito que temos é o direito de consumir. Inclusive, utilizamos um pedaço do filme Quanto vale ou é por quilo, em que o ator Lázaro Ramos pronuncia estas palavras. O ser humano é aquilo que tem ou o que ele é? E ele, além de ser visto como consumidor, ele se ´coisifica` também. Ele também é mercadoria. E mercadoria não interfere em processos políticos. Todas as relações de poder têm dinheiro envolvido e isso reduz o papel político de cada um, considerando que quem não tem nada não opina. E este recorte já foi de gênero e de cor e. hoje, se soma ao poder aquisitivo.

CHH: Existe, da parte do Estado, uma preocupação real com a educação?
Nina Fideles: Sim. Com objetivos claros e definidos pelo mercado. Esta é a real preocupação. Como se tratam de cofres públicos, o lance é não gastar dinheiro com isso, e conseguir ganhar com as relações estabelecidas entre parlamentares, empresários, instituições não-governamentais inclusive.

O outro movimento é transferir esta responsabilidade às instituições privadas. É o que acontece com as universidades. Porque, na verdade, toda a educação será pautada de acordo com as exigências do mercado. Precisamos de mais advogados, mas estes advogados deverão ser treinados para driblar políticas ambientais, por exemplo. E será assim em todas as profissões. Ninguém é treinado na universidade a interferir e apoiar as causas dos trabalhadores, as nossas de verdade. Isso não dá dinheiro, não é mesmo? E, talvez, o que mais marque isso tudo seja a necessidade do mercado ter profissionais e uma educação totalmente acrítica com relação ao mundo, ao ser humano e suas relações.

CHH: Recentemente, você publicou uma reportagem sobre a questão da moradia. Nos fale um pouco sobre sua pesquisa para a elaboração dessa matéria.
Nina Fideles: Eu sempre proponho pautas que acredito serem de extrema importância, mas que ou não são tratadas pela mídia ou, quando são, é de forma superficial - e, muitas vezes, preconceituosa. Esta reportagem sobre moradia tinha outro foco inicial, que eram os casos dos incêndios nas favelas de São Paulo. A mídia nos fala o que aconteceu, como foi, mas sempre deixa uma enorme lacuna de perguntas. Enquanto isso o Estado finge que faz o que deve ser feito, e é tudo muito paliativo. Sempre me pareceu tudo muito estranho, e eu queria falar sobre isso. Mas este é um tema muito delicado, pois envolve acusações.

Durante a apuração, as pessoas não queriam entrar muito nessas questões, salvo algumas exceções. O fato é que a situação de todas as famílias atingidas era igual. Moravam há muitos anos em terrenos, desvalorizados na época da ocupação, e que hoje são demandados para outros empreendimentos. Só que o trâmite legal para resolver isso demora anos, muitos anos, então a via mais fácil é expulsar estas famílias de lá. Os incêndios são provocados por todo um desenho fundiário da cidade de São Paulo e o esquema de poder na cidade, que foi mais ou menos o que tratei na reportagem.

CHH: Atualmente, existem políticas públicas que possam resolver essa questão (habitação)?
Nina Fideles: Não tenho vivido ou acompanhado os trâmites legais de secretarias, de Estado, e as novas leis voltadas para isso, mas acredito que nada tenha mudado muito e o último programa de habitação elaborado, este a nível federal, tenha sido o Minha Casa, Minha Vida.

É sempre preciso enxergar além. O projeto conta com investimento e participação ativa de grandes empreiteiras e facilitou o acesso ao crédito. Mas o que isso significa? Circulação de capital. Tem-se acesso ao crédito, um subsídio do governo federal, e pagamento sobre juros. A quem esta política beneficia? Não é à população sem-teto, aos mais pobres e moradores de favelas. É uma política voltada para outra parcela da população que tem condições de pagar uma entrada, de seguir pagando prestações do financiamento e que ainda corre o risco de se endividar com os bancos. E dívida é uma bola de neve.

Ou seja, é uma política que faz parte do jogo de especulação mobiliária, que aumenta os valores de imóveis, estimula novos empreendimentos e o trabalho de empreiteiras, salvando-as, inclusive, de uma crise econômica. Mas não são políticas públicas que de fato resolvam o problema de moradia no Brasil, pois desconsideram o diagnóstico real deste problema.

CHH: No caso do rap. Você acredita que o canto falado brasileiro caminha para a total despolitização?
Nina Fideles: Hum... é difícil dizer, né? Eu acredito no rap brasileiro. Ele com certeza estimulou a mudança na vida de muita gente, o meu rumo inclusive, e eu não consigo deixar de mencionar isso. E acredito que quem faz também não pode esquecer isso. Este foi o rap brasileiro que conheci. Que não tinha amarras, falava sobre questões que ninguém falava, era fonte única daqueles temas. Mas não somente daqueles temas: era uma visão única de todos os temas. De amor, família, festas. Naldinho já falava de amor há muito tempo e de uma forma belíssima. O GOG também. Xis, Thaide e outros abordaram diferentes temas... Portanto, o rap não só falava de problemas sociais, de periferia, de favela. A gente precisa saber de tudo, ouvir de amor, curtir um baile, mas sem alienações. E ter uma fonte mais confiável que fale disso. E também se dançava muito nos bailes. Não ficava todo mundo parado pensando na vida, triste ou puto com a situação.

Para evoluir, não é preciso banalizar a música, mas fazer melhor, aprimorar, atingir um outro patamar - profissional, inclusive. E hoje tem muito mais pessoas fazendo rap e nem todas com muita clareza disso. Hoje é muito mais fácil fazer rap, inserir na mídia, gravar um clipe. E me parece que isso deixa os temas mais estreitos.

O rap falava para milhões, com mais identificação, e não para o seu próprio umbigo e de seu próprio umbigo. Hoje percebo certo egocentrismo, um tal de ditar regras do que estava errado no rap e de como deve ser feito agora, que me incomoda. Quantas letras não têm que o cara fala o quanto ele é ´foda` e a sua levada é embaçada, e as minas adoram? E isso considerando uma visão muito ´sãopaulo-cêntrica`. Mas em outras cidades do interior de São Paulo e em outros Estados ainda existe muito preconceito contra o rap, o pessoal que faz o hip-hop nesses lugares acaba tendo, além de mais dificuldades, outros estímulos e outras ideias para fazer rap. Suas inspirações serão outras. O tema tratado não será o fator principal. Não é a batida, a levada, mas o que o artista espera da própria música, da sua arte. O que ele faz da sua arte e aonde ele pretende levá-la e pra quê.

CHH: Existe algum elo entre o rap dos anos 1990 e a nova geração de artistas?
Nina Fideles: As referências, o apoio, as críticas e opiniões de uma geração mais velha são intrínsecos a um processo como este. Não há como fugir. Isso no rock, na MPB, no sertanejo...

Nos anos 2000, as grandes referências nacionais do rap ou não produziram muitas coisas, lançaram discos, ou os que lançaram não fizeram o efeito que naturalmente esperávamos. Foram muitos anos sem marcar a época, sem ecoar pelos quatro cantos. Com isso, uma nova geração que surgia e se interessava pela cultura acabava perdendo um pouco as referências, e se perde uma memória histórica desta cultura.

E geração não deve acarretar nenhum valor, se é bom, ruim, melhor ou pior. É apenas uma identificação de tempo, de visão do mundo. O mundo mudou, mas o que mudou? O mercado mudou e o rap tem se inserido mais. E, assim como toda rebeldia tem seu preço, qualquer aliança também tem. O que se deixa pelo caminho quando se conquista mais espaço na mídia? O que mais se transformou no rap? Não é dizer se é certo ou errado, mas fazer uma leitura crítica disso tudo.

E acredito que os caras e minas que construíram o rap brasileiro tenham, eles mesmos, aprendido com os erros e acertos da caminhada. Isso ainda não acabou. Ainda tem muito a construir e acredito que todos estejam no risco do erro também. Mas acreditar que se tem a fórmula para ´salvar` o rap brasileiro é demais. Se criar um conjunto de regras que devem ser seguidas, na tentativa de contrapor outras regras, é como A Revolução dos Bichos (*).

(*) A Revolução dos Bichos - livro do escritor George Orwell.

CHH: Ao falar dos problemas da periferia e da desigualdade social e racial, o rap de protesto resiste ao individualismo, ao "paraíso" que o capitalismo prega. Como você acha que esse discurso precisa ser feito para alcançar a maioria dos jovens que se afastam de temas sérios que representam seu futuro?
Nina Fideles: Discurso será sempre discurso. O efeito que ele causa é, de certa forma, limitado também. Eu não saberia dizer nem arriscar como fazê-lo e acredito que ele funcionou por muito tempo. Talvez, agora, a investida esteja muito forte, é mais difícil identificar o inimigo comum, as coisas estão mais difusas. Falar de coisa séria de forma engraçada funciona em aulas, propagandas, mas não toca o coração. Pode até tocar o bolso. Mas, efetivamente, não desperta a consciência de ninguém.

E o rap é feito por pessoas humanas, que não são perfeitas, que erram e são contraditórias. A busca por um super-herói, o ser perfeito que vai salvar todo o mundo, não existe. Claro que todos tentamos ser coerentes com a nossa vida, e a responsabilidade aumenta quando se grava uma música, quando se propõe a estimular o pensamento. E, como dizem, a única pessoa capaz de mudar a sua vida é você mesmo. A música, a arte, podem ser um incentivo, um despertar.

CHH: Como você analisa as relações de mercado no hip-hop (venda de CDs, valores de cachês, publicidade, pagamento de estúdio, etc.)? Existe uma alternativa para um outro tipo de economia, algo que não esteja nos padrões norte-americanos?
Nina Fideles: O mercado também é global. Ele não quer saber sua língua, sua cultura. E os padrões serão bem semelhantes, independente do país. Assim como não existe socialismo de uma ilha só, mudar este mercado apenas no Brasil é quase impossível. O que vende é o que vende e pronto. Mas é importante ressaltar a utilização da internet, a liberação de músicas, de álbuns completos, e a discussão sobre os direitos autorais. Acredito que esta discussão ainda é muito tímida entre nós, a questão da propriedade intelectual. E, mesmo com esta coisa da internet, é preciso tomar cuidado para não virar a arte virtual, principalmente em se tratando de rap e do perfil do acesso à internet da população brasileira. O trampo real, nas ruas, é e será sempre muito importante.

Mas o artista que vive de vender CDs não existe. Ou seja, ele precisa difundir sua música para que possa vender shows. E neste ponto também entra o mercado. Por exemplo, todas as vezes em que o grupo A Família se apresentou em atividades do MST, da Flaskô, que foram muitas, não foi cobrado cachê. Agora imaginemos se só tivessem movimentos sociais, eventos beneficentes para fazer. O que seria desses artistas do rap? É uma coisa que se tem a pensar. Como estão, financeiramente, as pessoas que construíram o rap brasileiro e o hip-hop no Brasil? É preciso o equilíbrio e o fortalecimento da circulação do hip-hop neste mercado e, quem sabe, a construção de um outro.

CHH: A questão ambiental poderia ser tratada de uma maneira mais forte no rap? Existe essa preocupação?
Nina Fideles: Poderia, sim, e já deveriam ter tratado de algumas questões presentes na periferia com um olhar mais ambiental. Como, por exemplo, a falta de saneamento, a ocupação de áreas de mananciais, os aterros e lixões, as enchentes. Infelizmente, parece que tudo que se constrói, produz e se destrói na cidade não afeta o meio ambiente. É mais um exemplo desses casos de algo que você não necessariamente conviva diretamente, mas que com certeza afetará nós todos. E enxergar para além é um exercício diário.

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