Quem mora em áreas de vulnerabilidade social e de conflitos tem diariamente muitas histórias para contar, tamanhas as experiências que pode viver ao fazer um passeio de poucos minutos. Como morador da Faixa de Gazah (periferia entre São Pedro e Cabo Frio), comigo não poderia ser diferente.
Ontem recebi um livro de presente do rapper Fábio Emecê, um irmão da luta pela igualdade racial, e tive que me dirigir a Cabo Frio para buscá-lo. Como era justamente o livro que tanto procurei para comprar na capital, sem ter sucesso, não poderia esperar até o dia seguinte para iniciar a leitura. Trata-se do polêmico "Acionistas do nada" (Quem são os traficantes de drogas) - do delegado Orlando Zaccone, jornalista e mestre em criminologia.
No retorno à Faixa de Gazah, ao desembarcar do ônibus do Búzios, por volta das 23horas, como costumo observar bem o ambiente ao meu redor, principalmente em se tratando de um bairro infestado de viciados em crack, percebi que havia uma moça estudante e dois rapazes de bicicleta.
Quase que em um passe de mágica, surge uma Blazer azul dando uma freada brusca. Era um desses novos camburões da Polícia Militar. O policial foi habilidoso e nem esperou o automóvel enorme parar por completo e já abriu a porta se dirigindo em nossa direção. Éramos 3 homens na rua com uma moça estudante distribuídos por poucos metros.
(delegado Orlando Zaccone)
O PM atento, abordou de forma veloz e sem motivo um dos rapazes (que não aparentavam ter mais do que 15anos) ao passo que o outro parou logo em seguida, esperando sua hora de ser revistado. O PM me olhou de cima a baixo e não me revistou. Talvez devido ao fato de eu estar portando um livro na mão e não um celular. Embora minhas vestimentas em nada diferenciassem daqueles rapazes. Pelo contrário, eu portava um blusão de frio e um bermudão com vários bolsos que poderiam facilmente esconder arma de fogo ou drogas. Fui simplesmente ignorado. Menos mal, há seis anos atrás eu levei tapa no rosto em uma dura na frente de minha casa ao voltar do trabalho e portar uma blusa com as cores da Jamaica.
Podemos ver que o estereótipo de classe faz toda a diferença na hora "da dura" dentro dessas áreas de conflito. Assim como a estudante (muito formosa, diga-se de passagem), continuei caminhando. O camburão passou por mim e novamente me ignorou. Logo após passaram os dois rapazes pedalando em direção à praça reclamando e meia voz: "Poh, a gente não pode nem ir comer um hamburguer mais e leva dura."
Ao chegar em casa e começar a leitura do livro, a reflexão sobre o ocorrido se tornou inevitável, assim como a publicação desta postagem. Segundo Zaccone em sua tese de mestrado que se tornou livro, existe uma espécie de "seletividade punitiva" por parte do sistema penal brasileiro, onde o estereótipo de classe é indispensável para a segurança pública selecionar quem deve ser ou não alvo das leis punitivas, ou até mesmo de uma simples dura.
Se pensarmos nos efeitos da semiótica nas relações humanas, chegamos a lógica muito interessante de que pode ter sido o livro que fez com que o policial diferenciasse meu nível de delinqüência dos outros rapazes que só portavam celulares, dentro daquela área de conflito. Curiosamente se tratava de um livro sobre criminologia na segurança pública onde o autor mostra como se dá a criminalização da pobreza no Estado do Rio de Janeiro.
Como costumo carregar os livros que estou lendo para onde posso (geralmente na mochila para ler em ônibus ou filas), pelo jeito terei muita história para contar sobre a relação Estado, sistema penal e áreas de conflito.
*Nome genérico criado para caracterizar a periferia entre as cidades de São Pedro da Aldeia e Cabo Frio.
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