sábado, 6 de outubro de 2012

Será o Marighella a bola da vez?


“Nossas palavras de ordem
Estão em desordem. O inimigo
Distorceu muitas de nossas palavras
Até ficarem irreconhecíveis.”

Se Bertold Brecht, que viveu entre 1898 e 1956, escreveu essas linhas acima em seu poema Aos que hesitam, é porque não é de hoje que a classe inimiga se apropria dos símbolos da nossa luta, os destorcem e os colocam até a seu favor.
Lembro que no começo da década de 1990, aqui no Rio era moda usar camisas com a cara de Bob Marley estampada. Até quem não ouvia reggae tinha pelo menos umazinha dessas. Na fase mais crítica da minha adolescência eu não perdia uma oportunidade de questionar essas pessoas sobre essa atitude. Geralmente quando eu perguntava a elas quem era o cara da camisa, ouvia como resposta coisas do tipo “um maconheiro que tocava reggae”! Mas, só? Ele não colocava a sua música a serviço da resistência, da proposta de um novo comportamento? Não foi uma figura política importante no seu país?
Mais recentemente o mesmo se deu com Che Guevara. Seu rosto estampava não só as camisas, mas também as mochilas, os bonés e todo tipo de acessórios. Pra nós que conhecemos minimamente o cara em questão e sabemos em prol de que ele dedicou quase toda a sua vida, era muito estranho vê-lo vestindo corpos que abrigavam mentes nas quais a sua obra não tinha o menor espaço. Mentes até reacionárias. Mais contraditório ainda é saber que esse cara que morreu na luta contra o capitalismo tinha agora seu rosto gerando lucro pros capitalistas.



O Movimento Punk surgiu no interior da juventude operária, na Inglaterra, nos anos 70. De orientação anarquista, suas marcas mais perceptíveis são a música e o visual de seus adeptos. E isso sempre incluiu o cabelo moicano. Enquanto o cabelo moicano foi uma exclusividade dos Punks, ele significava uma forma de protesto contra o extermínio branco praticado sobre os “índios” Moicanos, dos Estados Unidos. Mas depois que o megapopstarjogador inglês Beckham apareceu pela primeira vez usando o tal “penteado”, o corte moicano virou moda no mundo todo, perdeu todo o seu caráter contestatório e hoje é usado por uma enormidade de pessoas que não sabe quem são os moicanos, que nunca ouviu falar no movimento Punk e que possivelmente acredita que anarquia é simplesmente desordem.
É lógico que se formos fazer um apanhado mais minucioso, acharemos outros tantos exemplos. Até o meu amado e adorado Hip-Hop entraria nesse rol. Mas eu queria encurtar essa história e chegar ao Mariga.
Nascido em 1911, desde, no mínimo, a década de 30 ele já tinha atividade política. Quando foi assassinado em 1964, a sua própria saga já era um legado e tanto podendo ser herdado por todas as gerações seguintes. Isso sem contar a sua obra literária que, além de lindos poemas, também incluem importantes documentos como o Mini manual do guerrilheiro urbano, traduzido para outros idiomas pelo mundo. Por isso, pra nós que militamos pela superação do capitalismo, seu nome sempre é lembrado. No meu caso em particular, já há muito tempo ele é citado em minhas musicas, como a Pretos e pretas de armas na mão, do nosso mais recente CD, À opreÇão não mais sujeitos (http://soundcloud.com/fabioemece/o-levante-pretos-e-pretas-de), além de grafitado por nós do Coletivo de Hip Hop LUTARMADA.



Porém, de uns tempos pra cá, principalmente depois de se completar quarenta anos de sua morte, seu nome está mais presente nas bocas, nos muros, mas camisas nos poemas e até nas músicas. E esse recurso constante ao nome de Marighella já começa a ganhar contornos de vulgaridade. Em muitos casos ele já é falado por pessoas que nem imaginam quem de fato tenha sido Carlos Marighella e – já dá até pra desconfiar – nem procurarão conhecer. Já tem artistas citando o seu nome por perceber que ele agrada aos ouvidos de potenciais consumidores de suas artes. Recentemente, sob encomenda de uma cineasta, o grupo de REP Racionais MCs gravou musica para um documentário que aborda aspectos da vida desse companheiro de luta. A música virou clip e ganhou o premio de melhor clip do ano no VMB, a mais badalada premiação da musica brasileira. Como os olhos de boa parte do mercado fonográfico miravam o evento e como se trata do grupo de REP de maior expressão do país, as chances de Marighella virar moda também são enormes. O precedente pra sua imagem ser vulgarizada e explorada comercialmente, e seu grande legado ser lacrado e vedado ao conhecimento geral, está aberto. Mas a diferença entre a popularização de Marighella e a sua vulgarização está na nossa disposição em dialogar com a nossa classe. Essa também é uma oportunidade de dar aos nossos, acesso a outras referências pra além do mundo do esporte ou do entretenimento. Mostrar para @s da nossa classe que ela foi capaz de produzir personalidades que se notabilizaram internacionalmente pela defesa de interesses bem mais nobres do que enriquecer pessoalmente praticando algum esporte ou distraindo e alienando as mentes com obras de arte feitas exclusivamente para atender ao mercado. E que, inclusive, tant@s outr@s também deram a suas vidas nessa mesma caminhada e não tiveram projeção, até porque o objetivo da nossa luta não pode ser o reconhecimento, mas sim a contribuição para a eliminação da opressão e exploração. E nesse sentido, nossa música, a musica dos Racionais, o nosso graffiti... tem muito a contribuir.
Recentemente soube de um professor que milita na LER-QI, que tem trazido jovens pra luta a partir dessa mesma música dos Racionais. E é disso que estou falando.
Já nos expropriaram os meios de produção. Vamos agora deixar que nos expropriem até os ícones da nossa resistência?
Comecei esse texto citando Brecht. Então quero fechá-lo com um episódio que envolve uma outra obra dele.
“Há homens que lutam um dia, e são bons;
Há outros que lutam um ano, e são melhores;
Há aqueles que lutam muitos anos, e são muito bons;
Porém há os que lutam toda a vida
Estes são os imprescindíveis”

Esse poema foi lido por Galvão Bueno em homenagem ao Ronaldo “o fenômeno” na transmissão ao vivo do jogo de sua despedida da Seleção Brasileira!
Cabe?
Gas-PA (Coletivo de Hip-Hop LUTARMADA)

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