domingo, 15 de janeiro de 2012

BOAZIZI - o verdureiro que incendiou o próprio corpo e iniciou uma revolução no mundo árabe

“A III Guerra Mundial é guerra de guerrilha por informação
sem divisão entre a participação de militares e civis.” – Marshall Mcluhan

“Eles são feitos de dinheiro. Nós somos feitos de galos.”[3]
— Antisec Anonymous, contra prisões de Anons.

Desde que aprendemos que populações, distâncias e dólares podem ser medidos aos milhões, depois aos bilhões, a humanidade luta em busca de resultados: o que cada ser humano pode fazer, que faça alguma diferença em mundo tão gigantesco? E em 2011, depois de deixar para trás a identidade autoindulgente dos 4channers, os Anonymous enfrentaram esse dilema existencial.

Uma simples pergunta assombrava todos os vídeos, todas as matérias, todos os canais das AnonOps [Operações de Anonymous] no Internet Relay Chat (IRC): O que os Anonymous fazem tem consequências? Não que ter consequências seja indispensável; não esperamos que todos os atos das estrelas do esporte e das celebridades em geral tenham consequências. Não esperamos qualquer consequência, sequer, do que fazem os políticos eleitos!

Mas os Anonymous haviam abraçado a ideia de que as operações do final de 2010 teriam de fazer alguma diferença, mudar alguma coisa no mundo. Sim, sim, os Anonymous são bombásticos, engraçados, às vezes bem espertos, às vezes cruéis, quase sempre perversos e eternos amadores adolescentes mal informados. Mas... as operações dos Anonymous mudam alguma coisa no mundo?

Com o passar dos dias, com Anonymous, seu público online e a imprensa a avaliar seus movimentos, foi-se tornando cada vez mais claro que, dados os crescentes movimentos de protesto coletivo de 2011, o problema de ter ou não ter consequências não era problema só para os Anonymous.

Em todos os casos tratava-se de descobrir se ações que se empreendam de fora do sistema – das quais nós, ou alguns de nós, podemos participar – podem, de fato, mudar o mundo. Quando julgamos os Anonymous, estamos julgando também nossa própria disposição para agir de fora dos limites da sociedade normal. Não discutimos apenas se os Anonymous podem deixar sua marca no mundo: discutimos também se nós mesmos podemos – ou devemos, ou deveríamos – fazê-lo.

No final de 2010, o problema das consequências das operações dos Anonymous já estava no ar, mas foi preciso a primeira faísca que incendiou a Primavera Árabe, para que o problema chegasse afinal ao centro do palco.

Relações Internacionais dos Anonymous

Legenda da imagem: Imagem que parece ser de Bouazizi, em selo postal emitido pelo Governo de Transição da Tunísia.


Mohamed Bouazizi era um vendedor de frutas na vila de Sidi Bouzid no interior da Tunísia. Sempre foi homem simples, cuja vida ou morte não teriam consequências para o mundo. Você nunca ouviria o nome dele. Então, por nenhum motivo explicável, tudo isso mudou, dia 17/12/2010. As frutas que ele vendia foram confiscadas pela polícia e Bouzid foi espancado. Menos de uma hora depois disso, Bouzid andou para o meio da rua com uma lata de tiner e a roupa encharcada de tiner, gritando “E como é que eu vou ganhar a vida?” e deixou cair um fósforo aceso.

Bouazizi estava no fim da sua capacidade de aguentar, em silêncio, a dor, o abuso, que o haviam acompanhado por toda a vida. Mas aconteceu que, assim como ele, toda a Tunísia e todo o Oriente Médio também haviam chegado ao limite da capacidade de aguentar.

Em algumas horas, as ruas começaram a encher-se de pessoas que queriam manifestar-se contra a corrupção sistêmica que havia arrastado Bouazizi até a autoimolação; e nas duas semanas seguintes as manifestações espalharam-se como fogo pela Tunísia.

Era dia 2/1/2011. Dali a 12 dias, Ben Ali estaria fora do poder. Mas ninguém sabia disso.

“Havia dois postados no canal #operationpayback. O primeiro, sobre uma lei a ser aprovada na Hungria. O segundo, sobre alguma coisa na Tunísia. Por alguma razão, li o postado sobre a Tunísia, e outros também leram” – disse um Anon que participou da Operação Tunísia (OpTunisia)[4]. O postado dizia que o ditador da Tunísia Ben Ali estava censurando os telegramas de Wikileaks que falassem da Tunísia. Havia notícias desencontradas sobre Bouazizi (que seria estudante de computação, o que não é verdade); e que teria posto fogo ao próprio corpo, para protestar contra a corrupção policial (o que ele fez); e outras coisas.

Algumas pessoas constituíram a rede #optunisia no IRC e começaram a discutir o que fazer. O Anon de OpTunisia que falou com Wired.com disse que não supunha que nem a operação nem a revolução tivessem qualquer chance. O mesmo Anon escreveu no chat online:


“Ninguém se preocupava muito com a Tunísia, porque não é país muito conhecido. A coisa foi meio “Essa porra é impossível. OK. Vam’bora fazer essa porra”.


Nas semanas seguintes, o pequeno grupo atacou [“DDoSed”] e desfigurou páginas do governo tunisiano na internet e transportou notícias sobre o levante popular na Tunísia, de dentro para fora e de fora para dentro do país.


“Também distribuímos um care package[5] com ferramentas para fugir das restrições de privacidade na Tunísia, inclusive um script Greasemonkey para evitar que o governo da Tunísia interceptasse usuários do Facebook” – disse o mesmo Anon. (Scripts Greasemonkey são poderosos plug-ins de browser[6].)


No pacote, ia também uma mensagem ao povo da Tunísia, enviada pelos Anonymous:


“Essa é a revolução *de vocês*. Ela não será tuitada nem televisionada nem [sic] IRCada. Vocês *têm* de sair às ruas, ou vocês *perdem* a luta. Cuidem da segurança, se vocês forem presos, não podem [sic] fazer nada, nem por vocês nem pelo seu povo. O governo *está* de olho em vocês.”


Alguns no canal #optunisia eram tunisianos, entre eles slim404, cujo verdadeiro nome é Slim Amamou, blogueiro tunisiano muito conhecido[7]. Amamou e outros arriscaram-se muito, passando notícias e softwares de uns para outros, entre os Anons e o mundo exterior, e gente que já estava nas ruas.

Amamou foi preso dia 6/1/2011. Os Anons na #optunisia praticamente não dormiam. A polícia estava atirando contra manifestantes, o governo censurava páginas, inclusive do Facebook, mas as notícias continuaram a circular, e os protestos cresciam. Então, menos de um mês depois da imolação de Bouazizi, 23 anos de ditadura brutal chegaram ao fim, quando Ben Ali fugiu da Tunísia.


“Lembro que acordei dois dias depois, e minha casa ainda estava cheia de garrafas de champanhe vazias” – contou o Anon. – “Mas, em seguida, começamos OpEgypt [Operação Egito], quer dizer, ninguém descansou.”


Os Anonymous fizeram alguma diferença na Tunísia?


“Melhor você perguntar aos tunisianos, se acham que ajudamos” – respondeu o Anon. – “Fui fazendo o que achava que podia fazer. Meu grãozinho de areia.”


Amamou saiu da prisão para ser Secretário de Estado de Esportes e Juventude – talvez tenha sido o primeiro ministro dos Anonymous –, mas renunciou em maio, em protesto contra a censura que o governo de transição impôs à rede.

Talvez nunca saibamos o quanto os Anonymous foram importantes para a Tunísia. Mas a Tunísia mudou tudo, para os Anonymous. A OpTunisia foi a primeira das operações que ficaram conhecidas como “Operações Liberdade”, as Freedom Ops, operações dos Anonymous que, quase todas, começaram em países do Oriente Médio, em apoio à Primavera Árabe, mas espalharam-se.

Em seguida, veio a OpEgypt, onde os protestos eram muito maiores, e a situação muito mais complexa.

Desde o início da ocupação da Praça Tahrir e do dia 25 de Janeiro, “Dia da Revolta”, os Anonymous trabalharam para criar conexões ao vivo de internet e atacaram servidores do governo, para derrubá-los (DDoS), como haviam feito na Tunísia.

Três dias depois, Mubarak desconectou a internet. Os Anonymous enfureceram-se, tanto pela evidente ameaça existencial a toda a rede como meio de expressão política, como por verem-se reduzidos à impotência no caso, como aquele, de todo um país ser desconectado.

Mas Mubarak caiu dia 11/2; não durou muito mais que Ben Ali. Mais uma vez, os Anons gostaram da sensação de ser parte da história. Por algumas semanas, os doidos-por-internet convertidos em ativistas eram reconhecidos em todo o mundo por lutar um bom combate, ao lado do povo. E os Anons gostaram. As Operações Liberdade proliferaram.

As Operações Liberdade são úteis para explicar como acontecem as operações dos Anonymous. A qualquer momento do dia ou da noite, havia operações em andamento pelo IRC para vários países, não só no Oriente Médio. Havia canais para Grã-Bretanha, Itália, Irlanda, EUA, Venezuela, Brasil e muitos outros países, e também para Síria, Bahrain, Iêmen, Líbia e praticamente todos os países do Oriente Médio. Muitas das operações tinham poucos participantes conectados a um vídeo ou press-release sobre problemas naquele país, com convocação à ação; mas por longos períodos nada acontecia.

Tudo bem. Esse é o modo como os Anonymous propõem-se ideias e questões a eles mesmos. Esse sistema invertia a ordem à qual a imprensa estava habituada. Em praticamente todo o mundo, as proclamações surgem depois da decisão de agir. Os manifestos hiperbólicos dos Anonymous, suas ações que convocam para ações apocalípticas, mostram, sempre, que ali está uma questão sobre a qual eles querem falar. Para muitos jornalistas que escreveram sobre eles, os Anonymous deram a impressão de ser muito vento e pouca ação.

Mas esse é o modo errado de vê-los. Para a forma mentis do enxame movido a lulz, a agitação do vento pode ser exatamente o aspecto que mais conta. Outras vezes, ações menos dramáticas, menos barulhentas, brotam e enchem o canal, que, na sequência, volta a silenciar, quando os Anons já se mudaram e já operam em outra ação. Para as Operações Liberdade, não era vergonha passar algum tempo em silêncio; e, de repente, operações deixadas adormecidas voltavam à vida, ‘acordadas’ para responder a novos eventos, numa ou noutra determinada região relevante.

É importante entender o tipo de cada operação, se se quer entender se tiveram sucesso ou não. Mas às vezes nem isso é possível.

A mal fadada #OpCartel – convocação para atacar um cartel mexicano de drogas – fracassou, se foi lançada com o objetivo de deflagrar verdadeira guerra entre os Los Zetas e os Anonymous. Mas, se foi lançada para criar confusão e ganhar espaço na mídia, nesse caso os Anons que estiveram por trás daquilo sim, ganharam grandes dividendos em lulz; como operação de trolagem, foi um sucesso. Mas sem saber sequer quem criou aquela operação, nunca saberemos por que aquela operação foi lançada – e essa, precisamente, é a situação em que se está sempre, em muitas, talvez na maioria, das operações.

O mês de janeiro dos Anonymous foi integralmente doado à Tunísia, ao Egito e à Primavera Árabe, e foi o momento mais sério da história do enxame Anonymous. Mas o mês seguinte dos Anonymous, fevereiro, foi integralmente doado a uma até ali obscura empresa de segurança chamada HBGary Federal – e talvez, para os Anonymous, tenha sido o momento de mais pleno de lulz de todos os tempos.

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